– O Casamento – 

 

Seu Neco era um senhor de mais de 80 anos, viúvo. Ainda trazia traços do corpo atlético de sua juventude. Havia se mudado para aquele pequeno balneário do litoral gaúcho há mais de 10 anos, quando se aposentara pela Polícia Militar.

Quando sua esposa faleceu devido um problema cardíaco, sua única filha lhe pediu que vendesse a casa onde morava e que retornasse para sua cidade natal.  Seu Neco recusou imediatamente. Adorava o sossego daquele lugar, que mesmo na temporada de verão, se mantinha como um recanto familiar.

– Deixem-me viver sossegado, estou feliz aqui! – sempre respondia ele.

A filha e demais parentes não entendiam porque ele insistia em morar sozinho, longe de toda família. Mas seu Neco nem se preocupava em explicar seus motivos. Não entenderiam. Ele adorava sua vidinha pacata, no seu paraíso – era assim que ele se referia a sua prainha.

– Enquanto eu tiver saúde para fazer minha comida e cuidar das minhas coisas, sem depender de ninguém, daqui eu não saio! – costumava ele repetir a cada investida da filha para levá-lo para morar mais próximo.

Seu Neco apreciava sua rotina tranquila, e sentia-se feliz com o que a vida lhe proporcionava. Acordava cedo, preparava seu chimarrão – um hábito gaúcho – e sentado na varanda de sua casa, com o rádio ligado ao seu lado, lia seu jornal e, apesar das modernidades, expressão dele, não abria mão de seu jornal impresso.

Depois, por volta das 8h, com seus passos já trôpegos, caminhava até o mar, cerca de 1km de distância de sua casa. E então o momento mais prazeroso do dia: o banho de mar! Seu Neco adorava o mar!

No verão, costumava sentar-se a beira mar e tomar banho de sol, entre um mergulho e outro, um bate-papo com os guarda-vidas. No inverno, quase sempre o vento frio que vinha do mar lhe impedia de prolongar-se no seu passeio.

Depois retornava pelo mesmo caminho, passos lentos, mas sempre firmes. Sem pressa, um passo de cada vez.

À tarde, por volta das 15h, nova caminhada. Esta, bem mais curta: umas três quadras entre sua casa e a padaria, onde buscava pãezinhos quentinhos para o café da tarde. Uma parada aqui, outra ali, para trocar ideias com a vizinhança, quase sempre sobre futebol, o clima e o mar.

Seu Neco também adorava as flores, em especial as orquídeas. Quando via alguma em flor nos jardins vizinhos, sem constrangimento pedia uma muda. Não era raro, pedir mais de uma vez a mesma muda, para a mesma vizinha. Sua memória já não era muito boa!

Foi nessas idas e vindas a padaria que começou a conversar com a Margo. Dia sim, o outro também, se encontrava com a Margo na Padaria do Boni, e voltavam juntos pela rua, cada qual com sua sacolinha de pão.

Dona Margarida, a Margo, tinha 75 anos, e como seu Neco era viúva. Nunca tivera filhos.

– Deus não quis me fazer mãe! – era o que sempre repetia.

Vivia com uma irmã mais velha que lhe servia de companhia. Viviam brigando as duas. Dona Margarida, mais de uma vez pensou em mandar a irmã embora. Mas nunca teve coragem. Sabia que se o fizesse, sua irmã iria terminar num asilo qualquer. Ela tinha dois filhos que mal ligavam para ela vez que outra, e que a visitavam no máximo duas vezes por ano.

“Nem sempre ter filhos, significa cuidados na velhice”, pensava Dona Margo, sem coragem de falar o que pensava para sua irmã.

Seu Neco e Margo ficaram amigos. Cada dia que passava, mais amigos. E por fim, quando a primavera trouxe dias mais quentes, ela começou a lhe acompanhar todos os dias em sua caminhada até o mar. Tinham um no outro, uma companhia agradável, parceria para conversas triviais e para apreciar as pequenas felicidades que a vida nos propicia e que, o corre-corre do dia-a-dia nos impede de enxergar. Nada exigiam um do outro, compartilhavam suas manhãs em paz, alegria e serenidade,  com a sabedoria de quem já muito viveu!

Quando o verão chegou, seu Neco e sua Margo, já  passeavam a beira-mar de mãos dadas, o passeio e o banho de mar ficaram mais longos, e costumavam trocar um rápido e furtivo beijinho nos lábios quando se separavam, para depois cada qual seguir o caminho de casa e aguardar a hora de comprar pão, para novo e desejado encontro.

Seu Neco e Margo estavam apaixonados e felizes. Era possível ver em seus olhos, no sorriso, na alegria e gentileza das palavras, aquele encantamento e magia comum aos enamorados. Até os vizinhos e amigos da redondeza os achavam mais saudáveis, alegres e dinâmicos. Viviam seu amor maduro, sem pressa, sem promessas, sem compromissos!

– Milagres do amor! – respondia Margo, sem qualquer constrangimento, quando lhe faziam algum comentário a respeito. Estava amando no auge dos seus 75 anos, e não escondia isso de ninguém.  Ao contrário, compartilhava sua felicidade com orgulho e vaidade.

Entretanto, a filha do seu Neco, que nada percebia, não desistia de convidá-lo a retornar para sua cidade natal. Com o passar do tempo, estava cada vez mais preocupada com a distância, o avanço da idade e o pai morando sozinho. Fim de semana sim, outro não, o visitava; mas focada no seu mundo e na sua própria vida, não percebia a felicidade que seu pai vivia. Às vezes, sentia-se cansada em ter que viajar até o litoral, mas como filha única sentia-se na obrigação de se fazer presente.

Num sábado em que foi visita-lo, estava decidida a convencê-lo a fazer a mudança de cidade. Abordou o assunto novamente:

– Pai, sabe aquela casa do senhor Raul, o açougueiro?

– Claro que sim! Adoro aquela casa…

– Pois então, aquela casa está à venda!

-Ué! Porque será? Você sabe?

– Eu estava pensando que poderíamos vender essa casa aqui da praia e comprarmos aquela para o senhor…

O pai olhou surpreso para a filha.

– Quem lhe disse que quero vender essa casa?

– Seria melhor para nós todos, o senhor morando perto de mim.! Acho que a mudança lhe faria bem, morando próximo dos nossos parentes.

– Melhor para todos nós, ou melhor para você? – murmurou ele baixinho.

Sua filha nada respondeu, fingindo não ter ouvido o comentário dele.

– Como eu faria minha caminhada até o mar? – perguntou ele, quebrando um silêncio quase constrangedor.

– O senhor poderia fazer sua caminhada na praça, no centro da cidade.

– E o meu banho de mar?

– Bem, o senhor não poderá ter tudo…O banho de mar seria só nas minhas férias, quando poderíamos alugar uma casa no litoral!

– E a minha namorada? Deixaria para trás? Logo agora que encontrei a parceira ideal!

– Tá ficando caduco pai? Que namorada? O senhor nunca quis ter uma namorada depois que a mãe morreu!

– Aí que você se engana! Agora eu tenho uma! – respondeu ele com certo sarcasmo.

– Ok, pai! Não quer voltar pra nossa terrinha, tudo bem! Não precisa ficar inventando namorada como desculpa!

O senhor olhou para a filha, que parecia indignada com a suposta mentira do pai. Olharam-se por intermináveis segundos, e então o velho pai deu de ombros e disse:

– Muito obrigado minha filha por toda preocupação! Agradeço de coração, mas eu fico por aqui! Escolho o meu banho de mar…

Naquela tarde, quando voltava da padaria com sua Margo, contou a ela a conversa com sua filha.

– Você deve agradecer por ter uma filha que se preocupa com você, que vem lhe visitar a cada quinze dias! Minha irmã tem dois filhos, que não se importam com ela! Nem para ligar!

Seu Neco simplesmente disse:

– Eu preferiria que ela não quisesse interferir na minha vida! Age, como se eu fosse um velho demente!

Dona Margo deu uma risada, para depois dizer:

– Velho você é! Quer aceite ou não!

– I_D_O_S_O! Sou um I_D_O_S_O! – respondeu seu Neco, em alto e bom som. Estava irritado, não gostava de ser chamado de velho.

Dona Margo percebendo a injustificada irritação, respondeu com sua tranquilidade e paciência características:

– Neco querido! Idoso ou velho, não faz muita diferença! Os jovens nos veem como pessoas lerdas, que não conseguem acompanhar o ritmo alucinante da vida que eles levam, acham que sempre estamos doentes…Eles não entendem que somos de uma época diferente, e que nessa altura de nossas vidas, não precisamos mais ficar correndo atrás de coisas que na verdade, não importam e nem fazem sentido para nós!

A voz pausada e suave de  Margo, acabou por desarmar Seu Neco, que respondeu:

– Eu quero te fazer uma proposta, Margo!

– Diga, meu querido.

– Você quer se casar comigo? Casamos em regime de separação de bens para que minha filha não tenha motivos para reclamações!

Dona Margo parou de caminhar, e estática no meio da rua disse:

– Você enlouqueceu! Casar nessa altura de nossas vidas?

– Qual o problema? Não vejo nada demais! – respondeu simplesmente Seu Neco.

– Venha! Você não precisa responder agora! – complementou ele.

Dona Margo seguiu caminhando, só que agora a passos mais lentos. Talvez para conseguir encerrar a conversa até chegarem na casa de Seu Neco. Um silêncio se instalou, ambos focados em seus próprios pensamentos e reflexões.

Por fim, Dona Margo disse:

– Vou pensar com carinho na sua proposta, mas desde já antecipo uma condição!

– Muito bem! – respondeu feliz Seu Neco – Se já tem uma condição, é por que a proposta pode ser aceita. Me diga, qual é a condição?

– Casamos, mas continuamos morando em casas separadas!

Seu Neco não respondeu de imediato, ficou analisando com calma o que lhe fora dito.

Ambos seguiram caminhando, sem nada falar. Quando chegaram, à frente da casa de Seu Neco, ele disse:

– Sabe minha querida Margo, acho sua proposta de mesmo casados, morarmos em casas separadas, uma ideia perfeita, o casamento perfeito!

Dona Margo abriu um sorriso largo,  e agarrou-se ao pescoço do Seu Neco dando-lhe um beijo gostoso nas faces do rosto. Seu Neco feliz e satisfeito, completou:

– Mas minha querida, tem um detalhe…

Ficou aguardando e analisando as reações de sua namorada.

– Fale, homem!

– Vamos nos casar em segredo! Não quero avisar com antecedência a ninguém!

– Especialmente sua filha? – Dona Margo muito astuta havia captado a intenção do casamento secreto.

– Adoro sua perspicácia minha querida! – falou o idoso, entre risos – Você me poupa de explicações e justificativas!

– E o que vai dizer a ela? Ou não vai dizer nada?

– Vou dizer sim, mas só depois de casados! Na primeira oportunidade que ela vir com aquela conversa de vender minha casa daqui, e me levar para perto da família, vou responder que não posso me afastar da minha esposa! Só fico imaginando a cara dela!!

– Neco, seu danado! Isso só vai fazer com que ela fique com raiva de mim….

– E o que isso importa? Vocês não vão viver juntas mesmo!

– Sei não! – Dona Margo não estava muito convencida.

Seu Neco deu uma beijoca em sua amada e encerrou a conversa:

– Não há com o que se preocupar minha Margo! Minha filha pode ficar chateada no início, mas depois vai se acostumar com a ideia, e vai gostar de você sim!

Fez um afago nos cabelos brancos de sua querida, completando:

– Como não gostar dessa velhinha tão charmosa e querida?

Os dois deram uma boa risada, trocaram um selinho, e Seu Neco entrou no seu quintal, enquanto Dona Margo seguiu caminhando em direção a sua casa.

Os dias passaram, os dois foram conversando sobre o assunto e, por fim, chegaram num acordo; e logo, trataram de providenciar o casamento civil. Não haveria anúncios nem celebrações, e cada qual seguiria morando em sua casa. Dona Marina, a irmã de Margo, e um vizinho, muito amigo de Seu Neco, foram as testemunhas da união, acontecida no cartório da cidade vizinha. Após a rápida cerimônia, todos almoçaram num restaurante local, e pronto: estavam oficialmente casados! Seu Neco e Dona Margarida estavam felizes da vida!

Duas semanas após o casamento, a filha de Seu Neco veio lhe visitar no final de semana, e mais uma vez tentou convence-lo de que a mudança para perto dela, era necessário:

– Mas meu pai, por favor entenda! Eu não vou poder vir para cá, com tanta frequência! Este meu novo trabalho vai exigir minha atenção inclusive nos finais de semana!

– Mas você vem por que quer, Luana! Não há necessidade!

-Como não? Fico preocupada com você, sozinho por aqui! Tenho medo…

– Eu já te falei que não estou sozinho! Tenho a Margo! – retrucou ele, já antevendo que o momento de falar-lhe do casamento havia chegado.

– Que Margo, meu pai?  – Luana estava irritada com a teimosia do pai – Que Margo?

– Ora, Luana! Já te falei que encontrei uma pessoa…O nome dela é Margo!

Luana estava convencida que seu pai estava ficando demente.  Levantou-se do sofá onde estava, exasperada e foi para a cozinha. E mudando de estratégia, falou tranquilamente:

– Muito bem, então! Quero conhecer a candidata a minha madrasta!

Seu pai que lhe seguia, falou:

– Não é candidata não, minha filha!

Luna sem nada entender, perguntou:

– Como assim? Você não disse que havia encontrado uma namorada? Não estou entendendo mais nada…

– Ela já é sua madrasta! Eu e Margo já estamos casados!

Luana arregalou os olhos, e atirou-se numa cadeira:

– Como assim? Casou e nem me fala nada? Ficou louco?

Seu Neco olhou para ela, e na maior calma, disparou:

– Lembra que te falei de uma namorada? Lembra?

Luana lembrava sim, daquela conversa de algumas semanas atrás.

– Lembro! Mas achei que você estivesse inventando uma namorada como desculpa para não se mudar!

– Não preciso inventar nada! Ainda sou dono da minha vida! E não estou demente como você acha!

Luana ficou calada, envergonhada por ser pai perceber seus pensamentos em relação a saúde mental dele.

– Margo não é invenção! Existe e me faz muito feliz!

– Mas essa história de casamento é mentirinha, né?

– Não minha filha, não é mentirinha, não! Eu e Margo nos casamos em regime de separação total de bens, e acordamos que cada um continuaria morando em sua própria casa! Eventualmente, ela pode pernoitar aqui comigo, já que ela acolhe uma irmã em sua casa.

– Não posso acreditar que você fez uma loucura dessas!

– Então não acredite minha filha! Não é preciso!

E sem nem mesmo olhar para sua filha, pegou a chave do portão e a carteira.

– Vou lá na padaria comprar um pão para o café da tarde!

– Meu pai, por favor! Precisamos conversar sobre esse seu casamento! Preciso saber…

– Não tenho mais nada para te contar! Amanhã vou chamar a Margo para almoçar conosco e daí você a conhece!

E dando a conversas por encerrada, saiu em passos trôpegos, murmurando e rindo consigo mesmo:

– Agora, sem mais chateação para me tirar aqui, do meu cantinho! Fico no meu paraíso, com meu banho de mar, minha Margo e a minha felicidade!

Ainda pode ouvir os resmungos de sua filha! Mas ignorou, estava na hora de se encontrar com Margo na Padaria do Boni! E já estava atrasado…

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