O Tango |

Martina era uma jovem jornalista, oriunda de uma família simples na periferia de Porto Alegre, independente, cheia de planos e um tanto sonhadora, ainda que muito determinada na busca de seus objetivos. Sonhava muito, mas seus sonhos não eram nada impossíveis, ela sempre teve muito cuidado em não querer o que estava fora de seu alcance. Sonhava e buscava coisas palpáveis, realizáveis.

Tinha três paixões em sua vida: a escrita, os livros e a dança! Adorava dançar e apreciava os grandes espetáculos de dança! Ultimamente, havia desenvolvido um carinho especial pelo tango! Sim, o tango…Sua mais nova paixão!

Fazia aulas de dança de salão, dança contemporânea, e ultimamente, aulas de tango! A partir das aulas, ficou tão aficionada por essa dança, que estava bem resolvida a escrever um livro sobre o tango e, para tanto, pretendia viajar para Buenos Aires, na Argentina. Suas próximas férias, seria trabalhando nesse projeto pessoal. Iria juntar o útil ao agradável, como se diz na linguagem popular!  Ficaria um mês inteiro na terra do tango, visitando casas tradicionais de tango, entrevistando dançarinos e entusiastas da dança, estudando a história e a evolução desta dança!

Por um ano todo, ela trabalhou nesse projeto. Economizou tudo o que pode para poder se manter um mês inteiro em B. Aires, buscou os contatos, lugar para se acomodar, planejou visitas, estratégia de entrevistas, fez sua matrícula num curso da dança. Conforme o tempo passava, e suas férias se aproximavam, maior era sua ansiedade e expectativa.

Afinal, seria a primeira vez que faria uma viagem de férias sozinha. Foi uma decisão intuitiva. Queria estar focada no seu propósito e certamente, que qualquer acompanhante iria querer visitar outros lugares, fazer outros programas que não estivessem relacionados aos seus objetivos. Iria sozinha, teria tempo para fazer tudo o que precisava, e ainda poderia começar a rascunhar seu o livro.

Quando faltavam três dias para embarcar para Argentina, recebeu uma mensagem pelo “WhatsApp” da escola onde faria seu curso de tango. Por ocasião da sua matrícula, houve uma intensa troca de mensagens, e Martina acabou contando seus planos durante a estadia na cidade, e o livro, como objetivo final. Na ocasião, a pessoa com quem ela conversou, Ramón, um dos professores, ficou entusiasmado com seu propósito e prometeu ajuda-la no que fosse possível. Martina não levou muita fé nessa ajuda, achou que era só gentileza ou estratégia de marketing, e até tinha esquecido do fato. Pois bem, parece que a promessa de ajuda iria se concretizar.

O contato por “WhatsApp” era um convite para assistir uma apresentação dos seus futuros professores numa famosa casa de espetáculo em Buenos Aires, na sua primeira noite na cidade. Ainda lhe foi recomendado a usar de preferência um vestido social, pois era uma casa gabaritada, uma das mais famosas e caras, e que recebia muitos turistas.

Martina ficou encantada! Conhecia a fama e o “glamour” da referida casa noturna, e sabia que não poderia arcar com tamanha despesa do seu próprio bolso.  Haveria um jantar e depois o espetáculo de tango, e o seu convite era o pacote completo: suas férias trabalhadas começariam da melhor forma possível! Ficou eufórica.

No outro dia, no seu intervalo de almoço, resolveu sair em busca de um vestido bonito para usar naquela noite especial. O evento merecia o investimento! Procurou, procurou e acabou por comprar um vestido preto com detalhes em bordo, bem ajustado ao corpo, com as costas de fora e um fenda lateral na perna. Típico figurino das dançarinas de tango!

Naquela mesma noite, ao chegar em casa, logo após o banho, Martina foi para frente do espelho: queria ver como ficaria o vestido com seus “scarpins” pretos. Desfilou para si mesma, e entusiasmada ainda foi escolher brincos e demais acessórios para usar na ocasião. Acabou por decidir a usar apenas brincos, e um anel grande na mão direita!  Nada mais! Resolveu testar o penteado. Testou, testou e por fim, decidiu que usaria seus cabelos muito lisos, presos num rabo de cavalo alto e bem puxado! Gostou do que viu no espelho, uma perfeita e sofisticada dançarina de tango!

Se deu por satisfeita, assim, tudo planejado para a noite inaugural de sua estadia na capital argentina. Foi se deitar, ainda pensando que no dia seguinte deveria comprar meias de nylon para usar com o vestido.

Os dias que se seguiram passaram com Martina na maior ansiedade, fazendo mala, comprando uma outra coisa que deveria levar, acertando todos os detalhes.

Finalmente chegou o grande dia, a grande noite.

A viagem foi muito tranquila, a chegada no hotel, acomodação, tudo perfeito! Começou a se arrumar bem cedo, tal era sua ansiedade. Estava se maquiando, quando o telefone tocou! Era Ramón, seu professor de tango na Argentina, que falava um português razoável, intercalado com algumas expressões da sua língua.

– “Hola” minha querida! É Ramón quem fala, como estás? Fez uma “buena” viagem?

– Olá Ramón…sim, felizmente! Tudo tranquilo!

– Pronta para “hoy a noche”? Su estréia no mundo del tango!

– Ramón, por favor! Fale “despacito”! Não estou lhe entendendo muito bem…

Martina ficou um pouco confusa e desconfiada de todo aquele interesse e atenção do argentino. Mas, tentava se convencer de que não havia motivos para tal; havia pesquisado a escola, os professores, e até vasculhou as redes sociais do Ramón, depois do convite para aquela noite de tango. Parecia que era uma pessoa confiável!

– “Perdón” minha querida, meu português é terrível, e quando percebo já “estoy a hablar espanhol”! De novo: quero saber se estás pronta para “hoy” a noite? Sua estreia no mundo do tango? Vais arrasar!

Martina não entendeu nada! “Como assim, arrasar?”

– O que você quer dizer com arrasar? Eu só vou assistir, não é mesmo?

– “Bueno, se así quiseres” …Porque me “gustaria mucho si al final del show te pudiera pedir un tango conmigo”!

Martina congelou. Havia entendido direito? Ele queria dançar um tango com ela, no final do show? Dançar na frente de todo o público? Nem pensar, sem a menor chance!

– Por favor, não Ramón! Eu não sei dançar, seria um fiasco, eu seria motivo de risadas…É melhor, não!

– Ok, tu és quem sabe! Talvez “al final do tu curso con nosotros, te sientas más a gusto”.

– Vamos aguardar! – foi só o que Martina respondeu.

– Mire seu WhatsApp! Te enviei por escrito “las instrucciones al llegar a Madero Tango”. “Escribo” português melhor do que falo! Te aguardo a “noche”! “No puedo esperar a conocerte”!

– Gracias Ramón! – foi só o que Martina conseguiu dizer. Uma cólica abdominal surgiu e teve que correr ao banheiro. Estava nervosa e um pouco assustada! Sabia que os argentinos eram galanteadores ousados! Ficou temerosa de que a noite pudesse se tornar uma tragédia, caso Ramón avançasse o sinal.

“Será que os homens ainda acham que uma mulher viajando sozinha significa que está atrás de aventuras amorosas? Nãoooo, estamos no século XXI! Talvez seja melhor eu não ir! Arrumar uma desculpa! O que fazer?” – Martina estava indecisa sobre o que fazer, e os pensamentos saltitavam em sua mente.

Criou tantas expectativas sobre aquela viagem, sobre aquela primeira noite de tango. “Será que um argentino ousado iria colocar tudo a perder?”

Por fim, resolveu que iria sim, e caso fosse preciso, era só chamar um táxi para voltar ao hotel. Em último caso, poderia também cancelar o curso intensivo de tango que iria fazer com ele; mas esperava que nada disso fosse necessário, e que tudo não passasse de medos inconsequentes.

Quando chegou a casa noturna, havia uma moça na recepção que lhe esperava, e lhe encaminhou para sua mesa, onde dividiria espaço com outros turistas brasileiros. Uma mesa privilegiada, com ótima vista para o palco. Já estava trocando amenidades com seus parceiros de mesa, quando a recepcionista voltava a sua mesa, agora acompanhada com um homem.

– Senhorita Martina! – era uma voz grave e pausada

Ela virou meio corpo e se deparou com um sorriso encantador no rosto de um homem. Típica beleza masculina argentina.

– Pois não! – respondeu, levantando-se da cadeira.

Sentiu o olhar atento e perturbador que acompanhou seus movimentos.

– Ramón, a seu dispor! – Ele se apresentava e lhe oferecia a mão direita em cumprimento.

Comprimentos, amenidades, sorrisos e ele se retirou, deixando uma eletricidade no ar, e uma certa frustração para Martina, com o pouco tempo de conversa.

O jantar começou a ser servido e Martina tentou se concentrar nas conversas triviais junto aos seus acompanhantes de mesa. Um jantar maravilhoso, regado a espumante. Martina estava extasiada de alegria, e feliz por ter se decidido a comparecer no evento. Afinal, Ramón parecia ser ótima companhia: alegre, jovial, bonitão e encantador. Depois de três taças de espumante, todos os medos haviam ido embora e desfrutava com prazer daquele momento de pura descontração e prazer.

Quando a sobremesa foi servida, o show começou. Eram vários artistas, várias apresentações. Depois de algum tempo, o mestre de cerimônias anunciou os astros da noite: “Isabel e Ramón”.

Martina ficou maravilhada com uma apresentação magnifica! Um verdadeiro espetáculo! E feliz, compartilhava com todos que iria fazer um curso intensivo de dança com eles, os astros da noite. Quando o espetáculo estava finalizando, Isabel pediu que algum convidado masculino se apresentasse com ela. Queria demonstrar a todos como dançar tango, não era, na verdade, algo tão difícil assim!

Um voluntário corajoso levantou o braço, e foi convidado a ir até a pista que havia no meio das mesas. Então, foi a vez de Ramón pegar o microfone e fazer o convite. Martina, como se pressentisse algo, paralisou. Não queria acreditar no que ouvia:

– “Por mi parte, quiero hacer uma invitación específica! Uma brasileña que estará aqui com nosotros el próximo mês, estudiando la historia y evolución del tango, aprendiendo a bailar para escribir un libro sobre el tango!

Houve aplausos e depois um silêncio. Martina estava paralisada de medo e vergonha.

– “Por favor Martina Rodriguez, te ruego que bailes conmigo!”

Martina sinalizava com a mão e a cabeça que não! As pessoas a sua volta, que já sabiam em parte dos motivos da sua estada em B. Aires, começaram a incentiva-la a aceitar o convite. Não se podia recusar o convite do astro principal do espetáculo.

– Não tenhas “miedo”! Todos sabem que no bailas tango! – era a voz firme e adorável de Ramón, numa confusa mistura de português e espanhol.

Então, algum turista brasileiro gritou com toda força de seus pulmões: “Dance Martina!” Um dos homens sentados à sua mesa, levantou-se e foi até ela, estendendo a mão para lhe acompanhar até o palco! Martina, sem saber como sair daquela situação, colocou sua mão sobre a mão masculina estendida e levantou-se, para ser aplaudida por todos que aguardavam sua presença na pista.

Ramón caminhou até eles, exibia um largo sorriso no rosto, acompanhando o caminhar da jovem com real interesse, fascinado por sua beleza clássica e discreta. Martina estava com raiva dele, por lhe ter colocado numa situação tão constrangedora, mesmo sabendo previamente que ela não queria aquela apresentação. Ramón percebeu sua indignação, mas ignorou; estava entusiasmado e confiante! Tinha certeza que quando a música tocasse, ela sentisse seu corpo masculino a lhe guiar, ia se entregar a música e a dança!

Quando se encontraram, ele estendeu sua mão e murmurou:

– Minha diva, se entregue a música e apenas me acompanhe…

A primeira música tocou, e dançaram Isabel e seu parceiro voluntário. Não era exatamente uma dança, mas sim, uma espécie de aula, Isabel mostrando como fazer cada passo, e depois ambos praticando. Até que no final, era só uma repetição dos passos básicos. Quando acabou, foram muito aplaudidos.

Martina ficou mais confortável e confiante.  Agradeceu mentalmente por suas aulas de tango no Brasil, e por ter se vestido adequadamente para uma apresentação. Não tinha consciência de como estava lindíssima e sensual em seu vestido preto e bordo, os cabelos presos deixando à mostra suas costas nuas, e mais parecia uma experiente dançarina de tango do que uma turista.

Quando a música começou, tentou não pensar em mais nada e apenas apreciar o momento. Ramón lhe mostrou alguns passos, que ela conhecia de suas aulas.

Sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha, quando Ramon lhe puxou para perto, com seu braço contornando toda sua cintura, seus corpos se tocando. Ramón antecedia o que fariam, murmurando baixinho em seu ouvido, o que lhe deixava com todos os pelos arrepiados. Um estranho calor e um desejo crescente. Então, Martina tentou não pensar em todas aquelas sensações, e se entregou a dança e ao seu parceiro. Deixava-se guiar, e dançava com leveza e sensualidade. Simplesmente dançaram, sem paradas, dançavam como se houvessem dançado a vida toda juntos! Não faziam passos elaborados, é verdade! Mas a sintonia harmônica criada imediatamente entre eles, era percebida pela plateia, que se levantou e começou a aplaudir, antes mesmo da música terminar.

Isabel percebeu que algo inusitado estava acontecendo, e um tanto enciumada, acompanhava a tudo com atenção. E pela primeira vez, sentiu que alguém mais forte que ela se apresentava junto com Ramón. Naquele momento soube, que a sintonia entre eles havia se estabelecido; algo fundamental para um casal dançar tango com perfeição: quando os dois são um, entregues a música, deixando a energia fluir…

Quando terminou, as pessoas em pé, aplaudiram com mais intensidade. Martina olhou para Ramón, que ainda segurava sua mão.

– Dançamos tão bem assim? – Perguntou ela, ainda sem entender a reação do público.

– Você foi divina, magistral, minha bela!  – Ele respondeu, beijando suas mãos.

O leve toque dos lábios quentes dele em sua pele, a deixaram desconcertada, ainda mais aturdida. Aquele homem que acabará de conhecer, parecia mexer com todos seus hormônios, e tudo que ela queria naquele momento, era poder dançar mais e mais com ele. Ele parecendo ler seus pensamentos, foi até Isabela que a tudo assistia, pegou o microfone de suas mãos e anunciou que dançariam “Por una cabeza” de Carlos Gardel. O público delirou. Isabela nada entendeu. E Martina ficou deslumbrada.

Ramón a puxou para o meio da pista, lhe envolveu com seus braços e murmurou em seu ouvido:

– “Ahora que te he encontrado mi diva, nunca permiteré que te escapes de mí!”

Martina exultante, não sabia se havia entendido bem o que ele lhe dissera; mas sentia-se plena, encantada, e decidida a não pensar no amanhã, só queria curtir cada momento daquela noite mágica. Fez um movimento com a cabeça, para olhá-lo de frente, seus rostos quase colados, um sentindo a respiração do outro, olhos nos olhos, ambos cientes da química que acontecia entre eles, ignorando a plateia que a tudo assistia.

A música começou, e saíram dançando como se assim sempre tivesse sido!

Um bailar sem fim!!

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